teologia e prática
Trataremos, agora, da teologia da mortificação e sua rigorosa prática
penitencial, cuja influência se faz sentir até hoje, na espiritualidade cristã. Como
fonte de pesquisa utilizaremos os três manuais clássicos de teologia ascética e
mística, já citados no primeiro capítulo: “As três idades da vida interior”, de
Reginald Garrigou-Lagrange; “Compêndio de ascética e mística”, de Adolphe
Tanquerey; e “Teologia da perfeição cristã”, de Antônio Royo Marin.
2.1.
Teologia da mortificação
Segundo Antônio Royo Marin e seu manual, a configuração com Jesus
Cristo é a finalidade da vida cristã; e a mortificação é o meio para se atingir esse
objetivo. Somente seremos santos à medida que vivermos a vida de Cristo, ou
melhor, à medida que Cristo viver sua vida em nós. O processo de santificação
pode até ser chamado de processo de “cristificação”; pois necessariamente, o
cristão, para alcançar a perfeição, tem que se converter em outro Cristo (cf. Gl 2,
20). A santidade nada mais é que uma fiel reprodução da vida de Cristo, com
todas as suas conseqüências
176.
Para Royo Marin o caminho para a “cristificação” é assinalado, de modo
inequívoco, pelo próprio Cristo: “Se alguém quiser vir em meu seguimento,
renuncie a si mesmo e tome sua cruz cada dia, e siga-me” (Lc 9, 23). Não há outro
caminho possível, é imperativo abraçar a dor, carregar a própria cruz e seguir
Cristo até o Calvário, não apenas para contemplá-lo, mas para ser crucificado com
ele. Amar cada vez mais o sofrimento
177 deve ser a tônica da vida cristã; mas, para
isso, é imprescindível vencer a natural repugnância humana à dor, exercitando-se,
diariamente, no amor à cruz.
Aceitar com resignação, sem revolta, os sofrimentos que Deus envia já é um
grau considerável de amor à cruz; todavia, ensina Royo Marin, para chegar à
perfeição, é preciso ir além da simples passividade, é indispensável tomar a
iniciativa, ou seja, buscar a dor, praticando a mortificação cristã em todas as sua
formas recomendáveis, para dominar as pulsões do corpo, como recomendou são
Paulo: “trato duramente o meu corpo e o mantenho submisso” (1Cor 9, 27).
Quanto mais comodidade se oferece ao corpo mais rebelde e propenso ao pecado
ele se torna. Por outro lado, quando submetido a uma disciplina de sofrimentos e
severas restrições, o corpo se torna dócil e resistente às tentações
178. Assim sendo,
conclui Royo Marin, para evitar os pecados, é imprescindível a prática diária da
mortificação; mas não só para evitá-los; também para sanar seus efeitos residuais,
as chamadas ‘penas temporais’. Prevenir e sanar são, pois, os dois motivos sobre
os quais está estruturada a teologia da mortificação.
Adolphe Tanquerey ensina em seu manual que a motivação ‘preventiva’
justifica a utilização da dor como instrumento eficaz de luta contra as más
inclinações do corpo, com a finalidade de preservar-nos das faltas presentes e
futuras. Já a motivação ‘sanante’, segundo ele, legitima as práticas de
mortificação como oportunidade para adquirirmos méritos
179 diante de Deus,
obtendo, dessa maneira, a quitação das penas devidas pelos pecados do
passado
180.
Para tornar nosso estudo mais rico de esclarecimentos, esses dois motivos
fundamentais serão desmembrados, para, assim, analisarmos detalhadamente as
razões teológicas que os originaram. Seguindo a partir de agora o manual de
Reginald Garrigou-Lagrange, o desmembramento dar-se-á a partir das seguintes
causas: as conseqüências do pecado original, as conseqüências dos pecados
pessoais, a luta contra as tentações do mundo, a luta contra as tentações do
demônio e o desapego para alcançar a perfeição
181.
2.1.1.Para vencer as conseqüências do pecado original
Embasado no Concílio de Trento e na teologia de Santo Tomás de Aquino,
Garrigou-Lagrange atesta que Adão, o primeiro homem, por seu pecado, perdeu a
santidade e a justiça original
182; e transmitiu para todo gênero humano uma
natureza decaída, privada da graça e ferida
183. Por esse motivo, todo homem vem
ao mundo com uma vontade apartada de Deus, inclinada ao mal e frágil para fazer
o bem; com uma razão que facilmente cai no erro, e uma sensibilidade
violentamente inclinada ao prazer desordenado e à cólera
184. É a “ferida da natureza humana”
185, raiz do orgulho, do esquecimento de Deus e do egoísmo em
todas as suas modalidades 186.
Em razão dessa desordem e dessa fraqueza da vontade, prossegue Garrigou-
Lagrange, não nos é possível amar eficazmente e, mais que a nós mesmos, a Deus,
autor de nossa natureza. E só conseguimos superar essa debilidade com o auxílio
da graça sanante 187. Acrescenta ainda Garrigou-Lagrange a desordem da
concupiscência, tão palpável, que santo Tomás vê nela um ‘sinal bastante
provável do pecado original’, sinal que vem confirmar aquilo que a revelação nos
ensina acerca do pecado de Adão 188. Em lugar da tríplice harmonia original entre
Deus e a alma, entre a alma e o corpo, bem como entre o corpo e as coisas
exteriores nasceu a tríplice desordem de que nos fala são João: “Pois tudo o que
está no mundo – a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a
confiança orgulhosa nos bens – não vem do Pai, mas vem do mundo” (1Jo 2,
16)
189.
Segue ensinando Garrigou-Lagrange que o batismo nos sanou do pecado
original, aplicando-nos os méritos do Salvador, dando-nos a graça santificante e as
virtudes infusas; assim, pela virtude da fé, nossa razão foi sobrenaturalmente
esclarecida; e, pelas virtudes da esperança e da caridade, nossa vontade se voltou
para Deus. Todavia, enfatiza nosso autor, permanece, mesmo nos batizados em
estado de graça, a debilidade original e as ‘feridas em vias de cicatrização’, que às
vezes nos fazem sofrer e que foram conservadas, segundo santo Tomás, como
ocasião de luta e méritos
190. Garrigou-Lagrange faz questão de ressaltar que essa
debilidade original é bem assinalada por são Paulo:
Garrigou-Lagrange prossegue realçando que esse ‘homem velho’ precisa ser
mortificado, precisa morrer em nós. Do contrário, nunca conseguiremos o
domínio sobre nossas paixões, além de experimentarmos oposição e guerra
perpétua entre a nossa natureza e a graça. Se as almas não mortificadas não se dão
conta dessa guerra, é sinal de que a graça leva nelas vida muito raquítica; a
natureza egoísta é sua dona e senhora absoluta, ainda que possuam algo da virtude
da temperança e certas boas inclinações naturais que se tomam por verdadeiras
virtudes, completa Garrigou-Lagrange
191.
Conclui Garrigou-Lagrange afirmando a necessidade da mortificação contra
as conseqüências do pecado original, que ainda continuam existindo nos batizados
como ocasião de luta, luta esta indispensável para não cairmos em pecados atuais
e pessoais. Devemos nos esforçar para fazer desaparecer as conseqüências do
pecado original, especialmente a concupiscência, que inclina aos demais pecados.
Se nos mortificamos, as feridas vão se cicatrizando continuamente com o aumento
da graça que sana e que, às vezes, nos levanta para uma nova vida: ‘gratia sanans
et elevans’. Muito distante de destruir a natureza, pela prática da mortificação, a
graça a restaura, a sana e a torna mais dócil nas mãos de Deus
192.
2.1.2. Para vencer as conseqüências dos pecados pessoais
Os pecados, segundo Garrigou-Lagrange, quando repetidos, engendram os
vícios; estes, por sua vez, geram uma inclinação pecaminosa, que passa a ser um
elemento constitutivo do caráter. Essa tendência ao pecado, santo Tomás chamoua
“reliquae peccati”, acrescenta Garrigou-Lagrange
193. Um exemplo, segundo
nosso autor em questão, para bem ilustrar essa realidade: alguém que por muito
tempo foi viciado em bebida alcoólica e se confessa com contrição recebe, com o
perdão, a graça santificante e a virtude infusa da temperança; contudo, ainda
conserva a inclinação ao vício e, se não fugir das ocasiões, voltará a cair no
mesmo pecado de alcoolismo. Essas inclinações ao pecado precisam ser
mortificadas, precisam morrer, para libertar de grandes amarras a natureza e a
graça
194.
Conforme Garrigou-Lagrange a ‘satisfação’ vem também a confirmar a
necessidade da mortificação para vencer as conseqüências dos pecados pessoais.
Quando o pecador recebe a absolvição sacramental, lhe é imposta uma penitência,
isto é, uma satisfação, para obter a remissão da pena temporal de seus pecados.
Esta satisfação é parte do sacramento da reconciliação, através do qual ele recebe
os méritos de Jesus Cristo, que restitui, ou aumenta, a graça em sua alma,
conforme ensinamento de Santo Tomás de Aquino
195. Assim, prossegue Garrigou-
Lagrange, fica quitada, pelo menos em parte, sua dívida com a justiça divina. Para
conseguir esse efeito, o pecador ainda deve aceitar com resignação as penalidades
próprias da vida; e se isso não for suficiente para purificá-lo totalmente, deverá
passar pelo “purgatório”. E Garrigou-Lagrange ainda acrescenta que o dogma do
purgatório é uma prova contundente da necessidade da mortificação, pois toda
dívida com a justiça divina precisa ser paga, pelos méritos nesta vida, ou pelo
fogo purificador na outra
196.
Citando mais uma vez Santo Tomás de Aquino, Garrigou-Lagrange ensina
que assim como todo pecado requer satisfação, da mesma maneira todo ato
inspirado pela caridade é merecedor de recompensa
197. E conclui afirmando que
um arrependimento pleno de amor quitaria tanto a falta como a pena temporal,
conforme o demonstraram as lágrimas da mulher pecadora, que Jesus abençoou:
“Se eu te declaro que os seus pecados tão numerosos foram perdoados, é porque
ela demonstrou muito amor” (Lc 7, 47) 198.