A luta contra o mundo
Para falar da luta contra o mundo utilizaremos o manual de Antônio Royo
Marin. Segundo esse autor, o mundo é o ambiente anticristão, em que as pessoas
assumem uma mentalidade totalmente diversa do evangelho e, desse modo, ficam
distantes de Deus, totalmente entregues às coisas da terra. Este ambiente refratário
a Deus, acrescenta Royo Marin, constitui-se e manifesta-se visivelmente de quatro
modos: através das falsas máximas, das perseguições, dos prazeres e diversões, e
dos escândalos e maus exemplos
199.
As falsas máximas exaltam as riquezas, os prazeres, a violência, a fraude e a
corrupção para obter vantagens pessoais. Essas máximas subvertem a verdade das
coisas de tal modo, que, por exemplo, um corrupto é concebido como um ‘homem
hábil’ em seus negócios. As perseguições visam ridicularizar a vida de piedade, a
honestidade nos negócios, a fidelidade na vida matrimonial, enfim, buscam
desqualificar os valores cristãos. Os prazeres e diversões oferecidos pelo mundo −
teatros, cinemas, bailes, piscinas, praias, revistas, periódicos, novelas, frases de
duplo sentido, entre outros −, além de imorais, produzem uma verdadeira
escravidão, pois as pessoas passam a viver apenas em função deles, não
reservando tempo para outras atividades prementes ao bem estar humano, como,
por exemplo, o descanso. Por fim, completa Royo Marin, os escândalos e maus
exemplos são usados pelo mundo como incitação ao pecado, em algumas de suas
formas 200.
Ainda segundo Royo Marin, o remédio mais eficaz contra o mundo seria
ausentar-se, refugiando-se num mosteiro. Mas como nem todos os cristãos têm
vocação à vida eremítica ou monástica, e a maioria necessita viver imersa no
mundo sem, contudo, renunciar à perfeição cristã, é preciso adquirir a mentalidade
de Jesus Cristo, que é diametralmente oposta à mentalidade do mundo. Isso se dá
de muitas maneiras: fugindo das ocasiões perigosas; evitando espetáculos que
excitam as mais baixas paixões; avivando a fé; desmascarando as máximas do
mundo com as máximas do evangelho; meditando a fugacidade do mundo e a
eternidade de Deus; e, por fim, não sendo covarde, negando o evangelho de Cristo
para simplesmente agradar o mundo, mesmo que isso custe inimizades e
perseguições (cf. Jo 15, 18-20), finaliza Royo Marin 201.
A luta contra as tentações do demônio
Para falar das tentações do demônio retornemos ao manual de Adolphe
Tanquerey. Para embasar nossa luta contra as tentações do demônio, Tanquerey
utiliza as palavras de São Paulo: “Pois não é o homem que afrontamos, mas as
Autoridades, os Poderes, os Dominadores deste mundo de trevas, os espíritos do
mal que estão nos céus” (Ef 6, 12). Também cita São Pedro, que compara o
demônio a um leão que nos rodeia com a intenção de devorar-nos: “Sede sóbrios,
vigiai! Vosso adversário, o diabo, como um leão que ruge, ronda, procurando a
quem devorar” (1Pd 5, 8). Segundo compreensão de Tanquerey, a divina
providência permite estes ataques, pois todas as vezes que vencemos as tentações
do demônio fortalecemos nossa vontade e adquirimos méritos diante de Deus 202.
Contudo, Tanquerey adverte que o demônio não pode agir diretamente sobre
nossas faculdades superiores, a saber, a inteligência e a vontade, as quais Deus
reservou para si como um santuário: só Deus pode penetrar em nossa alma e
mover nossa vontade sem fazer violência. Mas o demônio, ainda segundo
Tanquerey, pode agir diretamente sobre o nosso corpo, sobre os nossos sentidos
externos e internos, especialmente sobre nossa memória e nossa imaginação,
assim como sobre as paixões que têm origem em nosso apetite sensitivo; e, desta
maneira, consegue agir ‘indiretamente’ sobre nossa vontade, cujo consentimento
solicita através dos diversos movimentos da sensualidade. Mas ainda que o poder
do demônio se estenda às faculdades sensíveis e ao corpo, Tanquerey,
fundamentado na teologia paulina, assevera que Deus estabelece um limite a esse
poder, para não sermos tentados além de nossas forças (cf. 1Cor 10, 13) 203.
E para não ser vítima das astúcias do demônio, que inicialmente nos
estimula a praticar faltas leves para depois levar-nos a outras mais graves, Jesus
Cristo mesmo nos exortou a recorrer à oração, ao jejum e à esmola (cf. Mt 17, 21).
Agindo dessa maneira, conforme Tanquerey, a tentação, não apenas será
derrotada, mas, citando São Tomás de Aquino, se converterá em ocasião de atos meritórios 204.
Desapego para alcançar a perfeição
Para explanar a busca da perfeição utilizaremos os manuais de Garrigou-
Lagrange e Antônio Royo Marin. Ao falar da perfeição, Garrigou-Lagrange parte
do princípio bíblico de que somos chamados a participar da vida íntima de Deus.
Nosso fim último é a vida sobrenatural. Por isso não basta que vivamos somente
segundo a reta razão, isto é, como seres racionais que submetem as paixões à
razão; é necessário que vivamos como ‘filhos de Deus’, submetendo a razão ao
domínio da fé, de tal modo que a caridade sobrenatural inspire todas as nossas
ações. Isto nos obriga ao desapego de tudo aquilo que seja simples interesse
terreno; enfim, de tudo o que não seja meio para alcançar Deus. Por isso, conclui
Garrigou-Lagrange, necessitamos combater o natural apego às coisas da terra, que
absorve nossa atenção em detrimento da vida da graça. E como fundamentação
bíblica, cita São Paulo: “Visto que ressuscitastes com Cristo (pelo batismo
procurai o que está no alto, lá onde se encontra Cristo, sentado à direita de Deus; é
no alto que está a vossa meta, não na terra” (Cl 3, 1-2) 205.
Ainda para reforçar que o cultivo do espírito de desapego é um dos grandes
preceitos cristão, mais uma vez Garrigou-Lagrange cita São Paulo: “Doravante,
aqueles que têm mulher sejam como se não a tivessem (...), os que compram como
se não possuíssem, os que tiram proveito deste mundo, como se não
aproveitassem realmente. Pois a figura deste mundo passa” (1Cor 7, 29-31). É
preciso evitar o apego às coisas e às pessoas, para chegar até Deus. A infinita
dignidade de nosso fim sobrenatural requer total abnegação às coisas humanas,
por legítimas que sejam, pois poderíamos nos deixar absorver por elas,
prejudicando, dessa maneira, a vida da graça, finaliza Garrigou-Lagrange 206.
Para enriquecer o tema, finalizamos acrescentando o pensamento de
Antônio Royo Marin a respeito da busca da perfeição. Segundo esse autor, Jesus
crucificado é o modelo, por excelência, de desapego e abnegação às coisas do
mundo. Nossa incorporação a Cristo, pelo batismo, obriga-nos à experiência
purificadora da dor, pois somente a cruz nos configura com Cristo de uma
maneira perfeitíssima, libertando-nos dos apegos desordenados. Antônio Royo
Marin é incisivo, para ele quem almeja a perfeição deve alimentar amor pelo
sofrimento, e cita como fundamentação bíblica São Paulo, que nutre verdadeira
paixão pelo sofrimento ao declarar que vive crucificado com Cristo (cf. Gl 2, 19)
e não quer gloriar-se senão na cruz de Jesus Cristo, pelo qual vive crucificado para
o mundo (cf. Gl 6, 14) 207.
A prática da mortificação
O estudo que acabamos de fazer do embasamento teológico da mortificação,
a partir dos manuais de ascética e mística, evidenciou como o pecado, o mundo, o
demônio, os apegos desordenados e a aversão à dor dificultam e limitam a ação da
graça para levar-nos à perfeição. É preciso lutar energicamente contra esses
obstáculos que afetam o corpo com seus sentidos exteriores e a alma com todas as
suas potências, segundo ensinamento geral dos três manuais em estudo. A partir
desta constatação, a prática da mortificação preocupa-se em abarcar integralmente
todas as dimensões do ser humano, através de exercícios estáveis para purificar o
corpo, os sentidos internos, as paixões e as potências da alma 208. É o que
analisaremos no proximo capitulo , utilizando o manual de ascética e mística de Adolphe
Tanquerey.